Na segunda metade da década de 90, os serviços de internet começam a ser operados em escala comercial no mercado brasileiro, numa época em que a conexão ainda era movida a pulso discado. Instabilidade, lentidão e um barulho muito chato, parecido com uma cigarra cantando no pequeno alto falante da placa de fax modem, que equipava a nova linha de PCs multimídia.
Era uma revolução tecnológica! Acessar o mundo por uma tela. Pouquíssimos anos antes, havíamos passado por uma outra, que nos fez substituir os velhos discos de vinil pelo som do CD, muito mais nítido e cristalino.
Internet era um mercado em franca expansão. E, claro, uma bolha, que estava prestes a explodir dentro da Nasdaq com a supervalorização das “empresas pontocom” e de tecnologia. Passados apenas três meses do apocalipse anunciado em forma de bug do milênio, um colapso implodiu dezenas de companhias de uma só vez, afetando diretamente a Yahoo!, uma das pioneiras em buscas online e maior investidora nesse novo mercado. Apesar do baque financeiro, a marca Yahoo! permanecia forte, o que lhe garantiu a liderança na audiência online em volume de acessos. No entanto, um ano depois sua situação ficaria ainda mais crítica com a ascensão de uma outra empresa de nome fácil, logotipo colorido e que fora fundada por dois alunos de doutorado da Universidade de Stanford. A Google criou um novo patamar para o mercado de internet.
Mas o que isso tudo tem a ver com a imprensa, ou mídia impressa? Tudo. Nessa época, ainda era aluno da faculdade de comunicação e havia uma discussão efusiva de professores que lançavam uma retórica questionando se o jornalismo impresso teria o fim decretado com a expansão da internet. É claro que a comparação era sempre baseada na ameaça que a TV impôs ao rádio na década de 40 e que depois a história mostrou que era possível um ambiente de coexistência pacífica entre as duas mídias.
Quando pensamos em um veículo de comunicação, Jornalismo é apenas um dos seus produtos. É a razão pela qual se vende, mas não a que sustenta o negócio
Os principais veículos de comunicação já iniciavam um processo de ocupação de espaço no ambiente online com sites de notícias e anúncios. No mercado de comunicação corporativa, essa discussão se repetia e seguia uma aposta de que os dois modelos caminhariam juntos. No início dos anos 2000, internet, de certa forma, ainda era considerada um privilégio e não representava uma ameaça iminente a um modelo de negócios de jornais e revistas estabelecido há 140 anos.
Quando pensamos em um veículo de comunicação, Jornalismo é apenas um dos seus produtos. É a razão pela qual se vende, mas não a que sustenta o negócio. A receita com venda de assinaturas é meramente uma contenção simbólica para os altos investimentos necessários para se distribuir um jornal ou uma revista. A receita para cobrir despesas operacionais e os salários sempre veio da publicidade.
O jornalismo enquanto indústria está há anos respirando por aparelhos e quem o está matando é exatamente a mídia impressa
Para os românticos, quando se pensa em um jornal, imagina-se logo um pomposo prédio com um grande parque gráfico, um depósito imenso para bobinas de papel, um centro de logística e, claro, uma redação com alguns andares repleta de jornalistas.
Pois bem. Uma visão menos romântica e mais gestora, baseada em relatórios contábeis e indicadores de vendas, mostra que toda essa pompa é exatamente a ruína financeira dos grupos de mídia. O jornalismo enquanto indústria está há anos respirando por aparelhos e quem o está matando é exatamente a mídia impressa.
Simples. Basta comparar o que viraram as edições de domingo dos principais jornais. Se há alguns anos, recebíamos em nossa porta mais de uma centena de páginas repletas de informações e grandes anúncios, hoje podemos contar rapidamente o volume enxuto de páginas de um jornal. Falta assunto? Provavelmente, não. O que ocorre é a evasão de anunciantes.
O levantamento anual realizado pelo Conselho Executivo das Normas-Padrão (CENP) – uma entidade de autorregulação criada pelo mercado publicitário – mostra que o investimento em publicidade no mercado brasileiro em 2019 foi de R$ 17,5 bilhões. Desse total, os jornais ficaram com R$ 473 milhões, ou 2,7%, enquanto os investimentos em internet representam 21,2% da receita, ou R$ 3,7 bilhões. Os dados completos podem ser vistos no site do PropMark ou do Meio & Mensagem.
No entanto, quando comparamos essa base de informações com os dados de 2005 auditados pela PWC (Price Waterhouse Coopers), vemos uma realidade totalmente diferente. O volume de anúncios publicitários nos jornais era de 16,3%, enquanto a internet ficava com 1,7% do total. Era o auge do debate sobre o jornalismo impresso versus o online, mas também o período em que plataformas digitais como o Orkut e MySpace começavam a ganhar volumes astronômicos de acesso.
Agora, analisando a tiragem diária dos cinco veículos com maior base de assinantes entre 2005 e 2019 (Folha, O Globo, Estadão, Zero Hora e Valor Econômico), observa-se uma queda média de 60% na circulação de edições impressas. Em contrapartida, sem nenhuma surpresa, as assinaturas para o conteúdo digital vêm crescendo de forma consistente, como mostra o levantamento realizado pelo Poder 360, com os dados do IVC (Instituto Verificador de Comunicação).
No entanto, em termos de volume de assinantes, a digitalização é a única alternativa para que o acessso a informação continue de forma equilibrada. Um alerta necessário é que uma operação híbrida representa um grande risco de colapso financeiro para os grupos de mídia, uma vez que deverão arcar com as despesas de uma grande operação com capacidade ociosa.
O principal produto do jornalismo, definitivamente, não é jornal, mas sim o conteúdo. Papel é apenas uma mídia. No século XIX era a única disponível
Se antes, o parque gráfico, os depósitos de papel e a operação logística eram ativos valiosíssimos para o jornalismo, hoje não é mais do que um passivo financeiro para os grupos de mídia. Basta observar os balanços contábeis. Uma produção diária que ao longo de 15 anos acumula uma queda de 60% coloca em risco o futuro de qualquer negócio, pois é a prova óbvia de que a demanda pelo produto é cada vez menor.
Porém, o produto de um jornal não é um calhamaço de papel que chega à porta de seus leitores todos os dias de manhã, mas a informação nele contida. Enquanto os grupos de mídia continuarem mantendo esse produto em seu portfólio, dispenderão uma fortuna diária em uma operação extremamente cara para algo que já não se paga há anos.
O principal produto do jornalismo não é jornal, mas sim o conteúdo. Papel é apenas uma mídia. No século XIX era a única mídia disponível.
Das principais consequências de uma operação deficitária arrastada durante anos, uma delas pode ser observada diretamente na profissão de jornalista. Se por um lado, os jornais são os que mais sofreram com a evasão de anunciantes, por outro, é o meio que oferece maior remuneração. O piso salarial de um jornalista profissional, que estudou comunicação durante quatro anos, é de (pasmem) pouco mais de R$ 3,3 mil, de acordo com a convenção da Federação Nacional dos Jornalistas. Parar aturar na TV ou em rádio, o salário é 27% menor para a mesma jornada diária de cinco horas de trabalho. Sem surpresa, é possível ver profissionais com anos de experiência, dobrando turnos, mas sendo remunerados pelo piso, ou até menos.
Apesar de tudo, ainda existe uma relação passional em torno do jornalismo impresso. É inegável. Por incrível que pareça, ainda há profissionais de comunicação que associam o espaço impresso a prestígio. É como se um determinado conteúdo venha a ser selecionado para a edição impressa porque é mais relevante do que outros.
Quanto mais rápida a informação chega ao leitor, maior é sua relevância. O conceito de breaking news é exatamente isso!
Esse tipo de argumentação parece até romântica, mas, analisando sob a ótica da razão ou do comportamento de mercado, não passa de uma estupidez, de uma tentativa desesperada de se agarrar a um barco em pleno naufrágio. Quem trabalha com comunicação sabe muito bem que informação, hoje, só tem valor se for relevante. E é mais do que sabido que, quanto mais rápida essa informação chega a um leitor, maior é sua relevância. O conceito de breaking news é exatamente isso!
Acreditar que uma reportagem de meia página de um jornal é mais relevante do que o mesmo conteúdo publicado no site desse mesmo veículo é mera ilusão. É só um fetiche. Se a informação, o furo ou a exclusiva ficou para o dia seguinte, provavelmente é porque não tem tanta relevância.
O fetiche do executivo com o jornal impresso morreu junto com o bico de pena da Gazeta Mercantil
Quando se vive uma era de algoritmos, de grandes volumes de dados, de modelos de inteligência artificial, estar em um meio impresso é quase a mesma coisa que estar invisível. Se o conteúdo não pode ser indexado aos mecanismos de busca do Google, não pode ser compartilhado em outras plataformas, no mundo de hoje é praticamente como se ele não existisse. Em situações de crise, pode até ser uma vantagem. Mas, quando se usa a exposição na imprensa como endosso de credibilidade, jornal acaba sendo apenas papel.
Lamento desapontar os românticos, mas o fetiche do executivo com o jornal impresso morreu junto com o bico de pena da Gazeta Mercantil. Aquela imagem do empresário que chega ao escritório e inicia seu dia com a leitura das “notícias” deixado sob sua mesa pela secretária já não existe mais há anos. Ficou para trás junto com os ternos marrons, as valises de couro e os telefones de disco. Por mais que ainda haja adeptos desse hábito em alguns gabinetes, estão se tornando seres em extinção.
Em termos práticos, tudo que estará no jornal de amanhã, já foi notícia hoje em outras mídias. Tenha certeza de que antes de levantar da cama, um tomador de decisão já leu as notícias que lhe interessam em diferentes veículos e idiomas.
Enquanto a discussão está ligada ao prestígio que uma reportagem impressa proporciona a um indivíduo, a conversa ainda é sadia. Porém, quando se provar o valor desse prestígio com métricas de equivalência publicitária, aí a coisa descamba de vez. Dia desses fui impactado pela publicação de um cidadão no LinkedIn que compartilhara um feito e tanto: reuniu o montante de reportagens sobre seus clientes em jornais durante um trimestre e cravou que tais exposições equivalem a R$ 180 milhões em anúncio publicitário. De duas, uma: ou é um picareta ou o sujeito não tem a menor ideia do que está falando. Soa, no mínimo, desonesto com seus clientes. O share publicitário de jornais fechou 2019 com pouco mais de R$ 400 milhões em receita, como já vimos.
Em resumo, conteúdo editorial é diferente de conteúdo publicitário. Estabelecer um parâmetro único para comparar coisas diferentes era uma metodologia usada quando não se tinha referências. Hoje é perfeitamente possível identificar o valor, inclusive financeiro, de uma exposição na imprensa tendo como base a contribuição do trabalho de comunicação para o negócio… mas isso é tema para uma outra discussão.
Voltando ao jornalismo, o que se percebe é uma queda vertiginosa na demanda por mídia impressa, mas não pela informação. Pelo contrário. O consumidor está disposto a pagar por conteúdo, a poder acessá-lo onde estiver e quando bem entender. O New York Times tem um case de sucesso amplamente estudado nas escolas de gestão do mundo inteiro, pois mostra a estratégia que salvou um dos mais tradicionais jornais do mundo em uma profunda crise financeira, mas que virou o jogo ao apostar no modelo online. Multiplicou não apenas sua base de assinantes, ou consumidores de conteúdo, mas também sua receita publicitária.
A conta é simples. O principal produto de um jornal não é papel, não é impressão, não é distribuição. É produção de conteúdo. No entanto, o conteúdo, que é o core business de um grupo de mídia, acaba sendo severamente impactado por fatores que não têm mais qualquer relação com o negócio. Por uma necessidade de redução de custos, corta-se folha de pagamento, paga-se pouco aos novos profissionais, sobrecarrega-se a força de trabalho e cria-se uma situação ideal para a evasão de talentos nas redações. Em muitos casos, profissionais medianos e com algum titulação igualmente mediana, acabam encontrando na docência uma alternativa de complemento salarial, o que gera um profundo desgaste na qualidade dos cursos superiores de jornalismo. Logo, boas carreiras não são construídas com cursos ruins. Jornalismo acaba se tornando um curso barato e uma opção para estudantes, sem qualificações mínimas e que ainda não decidiram o que querem fazer da vida. Um ciclo vicioso, portanto.
A única salvação para o jornalismo é romper com o papel e mergulhar de vez no mundo digital e permitir-se inovar, transformar de maneira profunda. A demanda por informação qualificada nunca vai acabar. Se até poucos anos, sua credibilidade era colocada em xeque, em um dos momentos mais instáveis da nossa história, o jornalismo se mostra essencial no cumprimento de sua função social, que é levar informação e contribuir para o exercício da cidadania, ajudando, inclusive, na preservação de vidas.
O futuro do jornalismo dificilmente será em outro meio senão o streaming. O bom conteúdo será sempre necessário. O profissional de comunicação será necessário, mas não da forma como o conhecemos hoje. Deverá ser multidisciplinar, integrando diferentes técnicas no exercício da profissão para entregar aos consumidores um produto de excelência como o jornalismo deve ser.
Por Leandro Bortolassi, fundador e CEO da Eight